Padre Pedro era o pároco da Igreja de São Benedito.

Em uma manhã de segunda-feira, resguardado por uma singela máscara, padre Pedro se queixava para uma roda de senhoras da falta que sentia do convívio com os fiéis nas missas dominicais — agora realizadas virtualmente, quando foi interrompido por um homem acompanhado de um cão.

– As pessoas, hoje em dia, têm mais interesse em assuntos do diabo do que de informações sobre o céu – disse o desconhecido, enquanto o cão, orelhas altas, sentava na calçada.

Indiferente aos piscares de reprovação que pareciam saltar das máscaras bordadas com as iniciais dos nomes de família de cada uma das senhoras, padre Pedro não se fez de rogado:

– Como você se chama, meu filho?

– Nasci em vinte e nove de agosto, seu padre.

Sorrindo com a inusitada resposta, no embalo do que vinha sendo conversado, padre Pedro seguiu a pauta:

– Me diga uma coisa, por que você não está usando máscara como todo mundo? Você precisa se proteger!

– Se eu fosse como todo mundo, talvez usasse, seu padre.

– Deus, com certeza, já deve protegê-lo! – falou uma das mulheres, buscando com o olhar a cumplicidade da roda.

– Posso saber por que você pensa que não é como todo mundo? – seguiu padre Pedro, olhos e ouvidos só para o  involuntário candidato a devoto de São Benedito.

– Porque bebo, seu padre.

– E por que você bebe, filho de Deus?

– Porque se eu afirmar que não bebo e disser tudo o que digo, vão me tomar por louco. Ainda mais se eu andar mascarado.

– Você não usa máscara, mas pensa bastante sobre usá-la, não é verdade?

– Seu padre, todo o mundo é que faz coisas sem pensar.

– Não sei se entendi… – falou o condutor da paróquia, seguido de uma pausa, esperando uma nova explicação.

Diante de um enigmático e silencioso sorriso, padre Pedro mudou de assunto:

– E esse atento cão, é seu?

– Eu ando com ele e ele anda comigo, seu padre, mas não sou o dono dele não.

– E será que ele não tem um dono?

– É por isso que digo que bebo, padre…

– Pedro, padre Pedro! – completaram as beatas, todas ao mesmo tempo.

– É por isso que digo que bebo, padre Pedro. Afinal, quem é dono de quem neste mundão de Deus? – respondeu o homem com a calma dos justos, olhando para todas as atentas e mascaradas senhoras.

– E nome, esse cão tem nome? Como ele se chama? – perguntaram as devotas.

– Começamos a andar juntos em trinta de agosto, um dia depois de meu aniversário.

– Entendi… – devolveu o padre, enquanto o cão, como se acompanhasse a conversa, ficava de pé.

Entretanto, um profundo e audível suspiro de uma das senhoras fez com que o cão voltasse a sentar e o padre retomasse a iniciativa:

– Foi você que o ensinou a sentar assim?

– Normalmente, quando senta, ele é que me ensina.

– Bem… está tudo bem! – disse o padre, encaminhando o fim da conversa. – Foi um prazer conversar com você. Espero sua presença na Igreja de São Benedito, assim que as missas forem liberadas!

– Padre, tempo virá em que a colheita será igual à semeadura – falou o homem arregalando os olhos, espetando um dedo em direção aos céus e conseguindo, mais do que nunca, a atenção de todos.

Depois, como um maestro a reger o silêncio, voltou-se em direção ao cão sentado. Um sutil movimento de mão colocou o  amigo nas quatro patas e lá se foram os dois, mão e rabo abanando, caminhando na direção de onde vieram.

Na manhã seguinte as beatas do padre Pedro faziam compras no bairro e, sem a presença do pároco, mesmo usando máscaras, falavam e falavam.

Foi assim que Georgy Butka, o açougueiro que morara em Florença, ouvia clássicos e lia Dante, soube da existência de uma espécie de profeta andarilho que atendia pelo nome de Vinte e Nove de Agosto e andava com um cão.

Foi assim que Peter Cat, o dono da cafeteria, soube que algumas pessoas pensavam que não adianta usar máscaras se lhe faltam todas as outras proteções.

Foi assim também que Bénya Krik, o Rei, dono da loja de móveis usados, lembrou que já conhecia Trinta de Agosto, o atento e sábio cão que sentava ao ouvir verdades.

*Vitor Bertini é escritor e consultor
bertini.vitor@gmail.com

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