Nossas Cartas, por Julio Ribeiro*
Eu aprendi a escrever cartas com meu pai, que era analfabeto.
Seu Alcebíades não teve oportunidade de ir a uma escola, desde os oito anos ajudava meu avô, que era lenhador e vida afora sempre foi um homem do trabalho pesado, em jornadas de 15 horas de faina.
Sua vida lhe permitia algumas poucas amenidades. Jogar pife, de vez em quando, com as irmãs, ouvir todas as noites o Jornal Nacional (ele não enxergava direito, então usava a tevê como um rádio) e, de tempos em tempos, ditava cartas endereçadas a parentes distantes.
Alguma das minhas irmãs transcrevia para o papel o rebuscado de suas frases, que deve ter aprendido de ouvido de alguém. As cartas se revestiam de certa solenidade e começavam sempre da mesma forma: “Espero que ao chegar desta, vá encontrá-lo gozando de boa saúde, junto com todos os seus…”.
Eu, guri ainda, ficava sempre na volta para “ouvir” as cartas, e ficava imaginando como seriam os primos e tios que nunca conhecera e que moravam lá pros lados de Curitiba.
Já crescido, eu passei a ser o canetinha do seu “Bide”. Além do nariz de cera todo torneado, as missivas terminavam com um “que Deus o abençoe em sua graça e até que nos encontremos novamente, lhe dê saúde e paz!”.
Por muitos e muitos anos, quando eu escrevia minhas próprias cartas, não sabia, não conseguia — acho que não queria mesmo — começá-las e terminá-las de outra forma.
Tem certas coisas que se tornam atávicas na vida da gente. Talvez, esse malabarismo com as palavras, ditadas pelo meu velho pai, tenha me influenciado a ser jornalista e a viver delas, as palavras.
Já há algum tempo não escrevo cartas — quem ainda as escreve? — mas guardo um respeito quase solene com a palavra escrita, como se elas fossem, talvez sejam, uma forma mais sublime de nos comunicarmos com as pessoas, com o mundo, com a história.
Entre os muitos hobbies que tenho, eu coleciono coisas antigas. Gosto muito de cartões postais, com dedicatórias e pequenas histórias condensadas nas poucas linhas de seus versos. Esses cartões eram remetidos sem envelopes, portanto tudo que era escrito estava sujeito à indiscrição do carteiro, do porteiro e de tantos quantos manuseassem o dito até que chegasse ao seu destino. Isso, no entanto, não impedia confidências, elucubrações e mesmo juras de amor.
Um dos que mais gosto é datado de 24 de abril de 1906. Comprei numa daquelas banquinhas às margens do Sena, na Rive Gauche, em Paris. No dia de seu aniversário Louis Gambert escreve, de Paris, para sua irmã Melle Heléne, que mora a cerca de 300 km, na pequena Mouaville, que hoje tem apenas 109 habitantes, imaginem há mais de um século! Louis conta que ainda sente dor na perna e que, por isso, ainda não voltou ao trabalho, mas que neste dia, que seria sua festa, longe de todos, a dor que mais sente é da saudade de sua irmã e queridos. Uma declaração de amor e saudade que atravessou mais de cem anos e agora chega até vocês.
*Julio Ribeiro é jornalista e Publisher da Athos Editora – julio@revistapress,com.br